Escritos e reflexões de uma mente atordoada Fora dos ilimitados limites da razão

domingo, outubro 02, 2005

O dançarino e o denunciante

Heráclito, o pipoqueiro observador*

Estava eu um dia desses no meu ponto de trabalho, sentindo o corriqueiro aroma das pipocas e observando os artistas de rua, que por aqui existem aos montes. São, na maioria das vezes, desempregados que, em momentos de aperto, descobrem repentinamente dons, que nunca imaginariam ter.

Estou acostumados a ver os mais estranhos seres demonstrarem as mais inusitadas habilidades. Hoje no entanto dois “artistas” em especial chamaram a minha atenção. O primeiro que eu avistei já tinha uma certa idade, era de baixa estatura e os cabelos pretos já haviam o abandonado. Na parte de cima da sua cabeça restava apenas um bem conservado aeroporto de mosquitos, mariposas e outros insetos voadores. O que mais chamava a atenção naquela figura era, no entanto, sua barriga. Ela era tão saliente e dona de si mesma que parecia ter vida própria. A dupla, o baixinho e sua barriga, faziam um verdadeiro show ao ar livre. Ele, vestido de odalisca, balançava freneticamente sua dupla saliente enquanto uma mala que estava aberta à sua frente esperava por um trocadinho.

Sua performance não ia muito bem, mas tornou-se uma catástrofe após a interferência de um outro “artista”. Era um cara meio esquisito, magro mas com uma certa barriga, de estatura mediana e que aparentava já ter sido muito mais gordo. Ele ficava de terno andando pela rua e apontando para os transeuntes. O Jairinho, carteiro aqui da área, me disso que já o viu cantando óperas, fazendo discursos e até vendendo dicionários. Ele era uma espécie de faz tudo. Ao avistar o dançarino, ele aproximou-se e disse:

-Eu te conheço de algum lugar.

O dançarino fingiu que não possuía o dom da audição e prosseguiu. O denunciante, porém, elevou o tom da sua voz e insistiu:

-Como eu não lhe reconheci antes? O que você está fazendo aqui?

O dançarino forjou uma concentração no seu show e continuou ignorando o denunciante, que por sua vez inflamou-se ainda mais e vociferou:

-Eu sabia que era você seu fariseu boquirroto, rufião de uma figa. Vem aqui que eu vou lhe desmascarar agora.
O dançarino tentou defender-se:

-Fique calmo vice, cuidado com os instintos primitivos.

-Eles já foram despertados, disse o denunciante que partiu para cima do barrigudo e arrancou o véu que lhe cobria o rosto. O público, tomado por um espanto, começou a vaiá-lo.

Aquilo havia sido o auge para o denunciante, que regozijante, repetia freneticamente:

-Tirei a roupa do rei, Tirei a roupa do rei.

O pobre desmascarado dançarino pegou sua maleta e ao som das vaias retirou-se da cena enquanto defendia-se repetidamente:

-Eu voltarei, eu voltarei. E voltarei nos braços do povo.

Aquelas duas figuras, provavelmente tinham perdido o emprego recentemente e no desespero de levar um pão para a casa, tentavam de tudo para ganhar um dinheirinho. Alguma coisa, no entanto, me dizia que eu já havia os visto em algum lugar. Por um momento eu tive a impressão de ter sido na televisão. Busquei na memória, mas fiquei apenas no campo das hipóteses. Retornei então para as minhas pipocas, porque elas sim, eu conheço muito bem.

*Heráclito, o pipoqueiro observador escreve para o incomensurável de vez em sempre. Mesmo com a sua conturbada rotina ele não abdica da sua coluna neste periódico e não pretende renunciar a essa função.