Candidata à Moribunda
-Koff, Koff, a onamatopéia que aqui utilizo é uma tentativa de traduzir em palavras a enésima tentativa de Cleosvaldo em acordar a respeitável senhora que repousava tranqüilamente apoiada em seus ombros. Ele estava muito cansado. O seu dia não havia sido dos melhores, mas ao menos havia conseguido um lugar na janela do ônibus ao fim daquele cansativo dia de trabalho. No entanto tudo tem um preço, e o valor pago por ele correspondia a um verdadeiro teste de paciência. Ele havia sido premiado com uma inusitada situação. A senhora que havia sentado ao seu lado, simplesmente adotou o seu ombro como travesseiro. O sono estava tão profundo que o ombro cleosvaldiano já sentia a proximidade de uma sexagenária baba.
Aquele simples rapaz já havia esgotado todas as possibilidades de se livrar da senhora. Tossiu, balançou-se, cutucou-a de leve, remexeu-se, tossiu novamente, mas nada, absolutamente nada dava resultado e a senhora descansava tranqüilamente sem nem ao menos tomar conhecimento do esforço de Cleosvaldo. Foi quando uma viva alma presente no ônibus notou o seu esforço e em uma tentativa de descontrair o ambiente disse:
-Ih maluco, ta difícil hein? Vai ver ela está morta. As palavras do engravatado que estava em pé ao lado da dorminhoca senhora soaram como um alarme para a loirinha que estava sentada no banco da frente.
-Morta, ai meu Deus, quem?
-Ficar do lado de morta dá 27 anos de azar e uma verruga na ponta da orelha, gritou uma gordinha que se intrometeu na conversa.
-Pára o ônibus, tem uma mor...
-Para o ônibus nada, eu quero chegar em casa logo, interrompeu outra passageira.
-Mas elas tá morta.
-Pois então que espere.
-Ela não está morta, eu só estava brincando, tentou tomar as rédeas da situação o engravatado.
-Toda brincadeira tem um fundo de verdade, lembrou a gordinha.
Enquanto toda a tripulação daquele coletivo envolvia-se ferozmente na discussão acerca da possível moribunda, Cleosvaldo continuava ali. A essa altura a baba já havia tomado conta do seu ombro e escoria em direção ao seu peito. Ele não tinha nem ao menos tempo em pensar no que dizer. Para as outras pessoas, o fato de ele ser o principal prejudicado da situação pouco importava e os questionamentos acerca da morta pareciam ser mais interessantes.
-Já sei, disse a loirinha, como se uma lâmpada tivesse sido acesa em sua mente. Vamos abrir a bolsa dela para ver se tem o telefone de alguém.
-É, e aí a gente liga e pergunta para algum parente se ela tem aquela esquisitice que as pessoas se fingem de morta e depois acordam. É uma doença aí de gente rica, falou a gordinha demonstrando todo o seu conhecimento em medicina, adquirido nas aparições do Dr. Draúsio Varela no fantástico.
-É, boa idéia, todos concordaram.
-Vai você aí, disse a gordinha, dirigindo-se para o engravatado.
-eu? Porque eu? O que que eu fiz?
-Cuidado, num encosta nela porque uma vez a prima da sobrinha da minha concunhada de 2º grau por parte de mãe encostou num defunto e ficou uma semana e meia sem conseguir comer nada, disse a loirinha.
-Então deixa que eu encosto, levantou-se a gordinha. Tô precisando perder uns quilinhos.
-Não, não, não, deixa que eu faço isso, assumiu o leme da situação o engravatado que revestido de coragem esticou a mão em direção à bolsa da senhora.
Todos os olhares acompanhavam atentamente o seu braço que aos poucos aproximava-se da misteriosa bolsa. Ele tentava não encostar na senhora e quando conseguiu tocar na bolsa, sua respiração tornou-se ofegante e seus batimentos cardíacos aceleraram. Cleosvaldo, a essa altura, já havia fechado os olhos e só esperava para ver o que iria acontecer, como um boi em direção ao matadouro. Um suspense digno dos filmes de Alfred Hithcock havia tomado conta do ônibus. O engravatado segurou a bolsa e puxou. Foi quando a senhora, a silenciosa protagonista da situação, fez um movimento rápido e tomando a bolsa em sua mão, atingiu diretamente a face daquele bem vestido cidadão, que caiu no chão do ônibus como um derrotado lutador. Nocaute.
-Vai roubar a tua mãe, seu ladrãozinho de uma figa, mostrou que de morta não tinha nada aquela senhora.
Ela então olhou todos os olhares que presenciavam a cena e depois de alguns segundos gritou quase que instantaneamente:
-Ô piloto, para aê que eu na passei do meu ponto. E o que que vocês tão olhando? Nunca virão alguém se defender de uma assalto não?
A senhora desceu e deixou todos os tripulantes daquele coletivo perplexos. Cleosvando ainda tentava entender o que havia acontecido enquanto enxugava a lembrança deixada pela senhora. Secando a parte da frente da sua camisa, ele percebeu um volume estranho no seu bolso. Colocou sua mão sem ter a mínima idéia do que poderia estar ali. Percebeu então que o volume que sentia era um papel dobrado que ele lentamente retirou. Em miúdas, mas bem escritas letras leu:
Muito obrigada pelo ombro e até amanhã.
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Informativo "o incomensuravel":
1: hoje foram acrescentados mais dois links no incomensuravel. Clicando aqui você poderá ver que o mundo não tem e não precisa ter lógica. É o flog do suíno sem noção. E clicando aqui você poderá ler textos muito conscientes e abençoadamente revoltados no blog da Adriana, a namorada do porco.
2: Ontem, dia 2 de julho, todos nós pagadores de impostos, ajudamos a bancar a festa julina promovida pelo nosso querido presidente e organizada pela nossa simpática primeira dama. Heráclito avisou-me que por um acaso do destino ele foi trabalhar na festa. Em breve o nosso pipoqueiro cronista estará me enviando em texto sobre esse que deve ter sido um dos mais importantes eventos do governo Lula. O Brasil não será mais o mesmo depois dessa festa. Eu até acordei hoje sentindo que as coisas vão melhorar. Emfim, aguardem o texto.