Escritos e reflexões de uma mente atordoada Fora dos ilimitados limites da razão

quarta-feira, dezembro 07, 2005

O tempo, as filhas e mais loiras geladas

A chuva teimava em cair. Era mais que uma chuvinha de verão; naquele princípio de noite São Pedro estava com incontinência urinária e a tempestade castigava a cidade. Isolados na Birosca do Enéias, Marcevaldo e Eleonildo estavam quase terminando de traçar a décima terceira loira gelada, quando uma conhecida musiquinha ecoou pelo ambiente:

-Eu já ouvi essa melodia antes, constatou Valdo.
-É o meu celular, essa é a música preferida da minha filhinha.
-“Catuca”, do bonde das tchutchuquinhas é a música preferida da sua “filhinha”?
-É sim, por que? Ah, deixa eu atender logo o telefone.
...

-Minha filha é mesmo um anjo. Está perguntando que horas volto para casa. Deve estar com medo da chuva, ela está sozinha em casa.
-Quantos anos tem mesmo a sua filha Nildo?
-Acabou de fazer 14. Está crescendo rapidamente.
-Sei como é...
-Ah, mas diga-me, e o Zé desceu, porque será que ele não conseguiu ser absolvido?
Marcevaldo, um tanto quanto pensativo, disparou:

-Sexo, só pode ser isso.
-Sexo? O Zé desceu foi cassado por causa de sexo?
-Não, a sua filha.
-Minha filha?

-É, essa tática é mais velha que os peitos da Dercy Gonçalves. Ela liga para ter certeza que você vai demorar e então liga para o namorado, ele vai lá e eles transam. Essa juventude de hoje em dia ta muito esperta né?

Eleonildo franze a testa, levanta da cadeira, olha desesperadamente para todos os lados, mais desnorteado que capa de revista masculina em biblioteca e diz:

-Não pode ser, eu vou para casa agora mesmo.
-Calma Nildo, espera a chuva passar.
-Não pode ser, minha filha, namorado, sexo, Nãooooooooooo.
-Senta aqui Nildo, vamos tomar mais uma. Enéias, desce mais uma aqui.
-É, desce mais uma aqui. Essa hora ela deve estar lá com ele.
-Para de pensar nisso, Nildo, a vida é assim mesmo.
-Assim como?

-Assim, você cria uma filha com todo o carinho, coloca lacinho rosa nela, vestidinho rendado, todos acham uma gracinha e por muito tempo ela fica sendo a sua princesinha. Mas o tempo, Nildo, escreva isso, o tempo destrói tudo. O tempo passa, acaba com a sua princesinha e você nem percebe. Aí, quando você cai na real, sua querida filha está dando uns amaços com um carinha qualquer no sofá da sua casa.

-No sofá? Não pode ser.
-Ela pode estar usando a cama também.
-Na cama? A cama da barbie que eu revirei a cidade para achar do jeito que ela queria? Não pode ser.
-Na dela não. Ela pode estar na sua mesmo. Os jovens adoram camas de casal.
-Eu não quero tentar imaginar isso, vamos mudar de assunto.
-Bom, você é quem sabe.
-Vamos falar sobre coisas alegres.
-Ah, sabe o que eu fiquei sabendo? O casamento gay vai ser legalizado na Inglaterra.
-Valdo, Eu disse coisas alegres, e não coisas gays.
-Então, isso não é alegre? O Elton John e o George Michael já até marcaram a data da cerimônia com os seus respectivos namorados.
-Acho que empreguei a palavra errada.
-Você sabia que gay também pode significar alegre em inglês?
-ah é? Então eu acho que nunca serei feliz em algum país de língua inglesa.
-Essa foi boa, o seu humor ta até melhorando.
-Isso não pode ser verdade. Primeiro eu descubro que a minha filha, a minha amada filha,minha princezinha, pode estar....nem quero pensar nisso. Depois eu descubro que os gays estão até se casando. Isso não pode estar acontecendo, acho que eu bebi demais.
-São os tempos modernos meu amigo e sinto lhe informar, mas isso está acontecendo sim. Ou será que nós bebemos demais? Éneias, manda mais uma gelada aí.
-É, meu amigo barbudo, manda mais uma que eu tô precisando.

* Eleonildo e Marcevaldo são assíduos frequentadores da birosca do Enéias. Eis um outro relato sobre eles: "Alces, presidentes e loiras geladas"