Escritos e reflexões de uma mente atordoada Fora dos ilimitados limites da razão

terça-feira, março 14, 2006

Breve relato de um frustrado futuro feliz

As coisas não andavam muito bem para ele e aquela fatigante viagem de ônibus apenas corroborava com esse fato. As obrigações do dia seguinte passavam por sua cabeça e ali ficavam, como se fosse necessário lhe lembrar das suas responsabilidades. Logo ele, que sempre honrava os compromissos e que nunca havia se atrasado. Até mesmo para uma simples e informal reunião entre amigos, ele sempre era o primeiro a chegar. Desde pequeno sempre foi assim, e na escola primária, ao ser o primeiro a aprender a ver as horas, seu talento para a pontualidade já estava atestado. A falta de controle sobre o tempo era o que mais o deixava irritado em uma viagem de ônibus. Precisava ficar ali, a mercê do motorista, do transito e das outras pessoas. Eram tantas coisas que o tornavam dependente que ele odiava a idéia de não ter controle sobre nada daquilo.

Estava ele ali, tão preocupado com sua vida que nem a viu entrar. E, quando ele a notou, ela já estava se aproximando. Aquela imagem hipnotizou seus olhos e confundiu todos os seus sentidos. Ele pôde tocar aquela pele macia com os olhos. Conseguiu sentir a beleza daqueles olhos e ouviu o esvoaçar dos seus cabelos. Nada fez sentido naquele momento, mas de uma hora para outra todas as preocupações desapareceram da sua cabeça. A expectativa de que ela viesse a se sentar ao seu lado estacionou na sua mente como uma dessas esperanças que renova a vida de uma hora para outra. Estava já a pensar no que iria lhe dizer quando alguém antecipou-se e se acomodou ao seu lado. De uma hora para outra o sorriso que ensaiava sair do seu rosto escondeu-se junto com a alegria e a esperança.

Ela passou por ele e aqueles olhos inebriantes pareciam lamentar a falta de companhia. Talvez tenha sido apenas impressão de um coração solitário, mas a tradução que foi dada àquele olhar o deixou atordoado. Todas suas expectativas estilhaçaram com tal ferocidade que seu coração parecia haver se dissolvido. Ela não haveria de sentar-se ao seu lado e ele iria prosseguir na sua jornada solitária.

Um futuro de negativas passou pela sua mente. Eles dois não haveriam de esquecer do tempo, ali mesmo no ônibus. Ele não iria esquecer da sua timidez e dizer todas as impressões acerca dela. Os dois não iriam trocar telefones, nem tampouco esperar pela ligação um do outro. A aceleração do coração, que iria ser provocada em um Cinema qualquer pelo primeiro beijo, não ocorreria jamais. As trocas de juras de amor eterno não existiriam. O casamento, os filhos, aqueles simples momentos em que um simples olhar acompanhando um sorriso faz o mundo parecer perfeito; nada disso iria ter lugar no que estaria por vir. Os dois, sentados à varanda de uma casa que lhes serviria de lar por tantos anos, em uma dessas simples e belas tardes de domingo, já idosos, não haveriam nem de ali estar e muito menos estariam a rir das estripulias dos seus netos. Naquele inexistente domingo de um futuro impossível, eles não iriam olhar um para e muito menos ter a certeza de que a proximidade da morte, já iminente, trazia consigo a certeza de que a vida que tiveram juntos valeu a pena.

Aquele futuro que passou por sua cabeça jamais viria a ocorrer. Um desencontro e tudo estava mudado. Um simples e estúpido desencontro e todas aquelas coisas imaginadas e até sentidas por seu coração foram desmanchadas e jamais ocupariam um lugar na linha do tempo. Já caminhando em direção à sua casa, ele sentia que todos os sentimentos que haviam ocupado seu coração haviam simplesmente desaparecido. Mas, o seu peito não estava vazio. Ali, ocupando todo ele, havia algo que ainda iria o acompanhar por muito tempo. Ali, no seu peito, algo corrosivo e angustiante fazia questão de fazer-se presente. Ali, no seu coração, algo havia apropriado-se de tudo e agora só havia espaço para ela, a desilusão.