Uma pedra no sapato
Tem certas coisas que importunam. Incomodam mais do que um elefante, ou dois, ou três...São como pedras no sapato, nos acompanhando a cada passo e sempre nos lembrando, seja pelo incômodo, pela dor ou pelas duas coisas juntas, que estão ali. Livrar-se desses incômodos é um desejo compartilhado por todos os que não fazem parte de algum grupo sado-masoquista. A maneira para sentir o alívio de tirar os sapatos e lançar longe as incômodas pedras possui uma variedade quase infinita. Mas não são todos os que tentam livrar-se da importuna situação. Alguns convivem com a pedra, seja pela ausência de outras opções, seja pela preguiça de tirar os sapatos.
Eu poderia escrever um livro sobre os diferentes tipos de pedras no sapato com as quais temos que conviver. Um desses pequeninos pedaços de rocha que faz questão de querer colocar-se entre o nosso pé e a palmilha do sapato, no entanto, despertou a minha atenção depois de assistir ao documentário “Ônibus 174”. O filme, como o próprio nome sugere, trata do episódio em que um assaltante manteve por várias horas cerca de seis pessoas como reféns no ônibus da linha 174 no Rio de Janeiro. Com um fim trágico, marcado pela morte de uma das reféns e do assaltante, ou melhor, seqüestrador, o caso evidenciou problemas sociais típicos das grandes cidades. São esses problemas que o filme discute através da análise do caso a partir da vida do Seqüestrador.
Sandro, o seqüestrador, é uma pedra no sapato e tanto, daquelas que insistem em incomodar e que não saem de jeito nenhum. Com seis anos, viu sua mãe ser esfaqueada e morta e iniciou sua trajetória incômoda para a sociedade. Fugiu de casa e uniu-se a outros tantos garotos que moram nas ruas, e convenhamos que esses garotos incomodam demasiadamente. Eles sujam a paisagem da nossa linda cidade, afastam os turistas e ainda ficam nos pedindo um trocado para matar a fome, como se tivéssemos alguma coisa a ver com a fome alheia. Para completar alguns deles ainda roubam.
Os meninos de rua são uma tremenda pedra no sapato da nossa sociedade. Não uma pedra qualquer, mas uma daquelas que não sai, principalmente porque nós estamos tão preocupados em engraxar nossos sapatos que nem atentamos para as pedras. Aprendemos a conviver com elas e temos que admitir que fazemos isso com maestria. Olhamos para as paisagens e não os vemos, exceto quando eles pedem algum trocado ou tentam nos assaltar. No primeiro caso, é fácil despistá-los e a melhor tática é mesmo fingir que eles não existem e pensar nas próximas férias ou na trama da novela das oito. No caso de um assalto, fingir que eles não existem não adianta. Perdem-se os objetos, o precioso dinheiro e fica apenas o lamento, acompanhado de uma certa indignação.
Voltando à pedra chamada Sandro, até que tentaram livrar-se dela. Foi em 1993, quando ele estava entre um grupo de menores que dormia em frente a uma igreja. Era madrugada, quando alguns valentões daqueles que gostam de fazer justiça com as próprias mãos mandaram ver e acordaram o grupo à tiros. 7 foram mortos, mas alguns sobreviveram e entre eles estava a nossa pedra principal do 174. Bem que tentaram, mas algumas pedras insistem em incomodar e tentar apenas livrar-se delas muitas vezes não dá resultado. Depois disso, Sandro ainda foi preso por assalto e mesmo assim insistiu em viver e em incomodar. Fugiu daquela instituição de correção onde umas 50 pessoas eram amontoadas em uma cela que cabiam 10 e continuou a importunar a sociedade como se estivesse gritando que ele ainda estava ali.
O grito só foi ouvido quando ele tornou-se estrela por um dia. Segundo alguns era esse o desejo dele, certamente não da forma como tudo aconteceu. Pessoas inocentes estavam tranqüilamente voltando para casa, quando de repente a pedra fez questão de incomodar. E como ele incomodou nesse dia. Passou a ser o protagonista de um filme real, uma espécie de reality show, transmitido por todos os canais de televisão. Por que ele incomodava? Porque ele ameaçava a vida de inocentes e trabalhadoras pessoas, que nada tinham a ver com aquele marginal que insistia em sobreviver. Um suspense real ocupou toda a tarde até que, quando parecia que tudo iria acabar bem, com o bandido morto e com algum herói beijando a mocinha, a pedra chamada Sandro incomodou ainda mais e matou uma inocente professora. Insistiu em importunar e só foi deixar de respirar após ser sufocado pela polícia. - Ufa, a sociedade respirou aliviada.
Bandido bom é bandido morto, é o que muitos dizem e no caso de Sandro essa máxima só não foi perfeita porque ele levou consigo alguém que nada tinha a ver com a história. E no fim, a professorinha foi enterrada com todas as homenagens possíveis, enquanto que a Sandro restou a solidão póstuma. A televisão questionou a incompetência da polícia em resolver o caso, leia-se em matar o bandido, só o bandido. Questionou também a insegurança em que os inocentes cidadãos vivem, estando a mercê de várias outras pedras como Sandro. Só faltou perguntar porque a cada dia novas pedras como ele instalam-se no nosso sapato e incomodam tanto e por que nós só as percebemos quando algo como o que ocorreu no 174 toma as páginas dos jornais. Faltou e ainda falta encarar o problema de frente e deixar de fingir que tudo funciona corretamente. A sociedade conseguiu livrar-se a muito custo de Sandro, mas se não repensar os seus valores e passar a agir de olhos verdadeiramente abertos, continuará a ser incomodada por muitas outras pedras. E como elas incomodam...